terça-feira, 31 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Maria Carlos Cortegaça Nunes
(aluna até 2009)


POEMA DAS COISAS

Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o desespero as busque.

Abre-se a porta e o próprio ar nos fala.
As cortinas de rede, exactamente aquelas,
a cadeira onde a memória está sentada,
a mesa, o copo, a chávena, o relógio,
o móvel onde alguém permanece encostado
sem volume e sem tempo,
nós próprios, quando os olhos indignados
nas pálpebras se encobrem.

Põe-se a pedra na mão e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro.

Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, estende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão e a mesma pedra avulta.

Se fosse o amor dos homens
quando se abrisse a mão já lá não estava.


António Gedeão, in Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro,
Ed. Assírio & Alvim.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… João Afonso Cortegaça Nunes (12ºA)

ALEGRO

Sente como vibra
Doidamente em nós
Um vento feroz
Estorcendo a fibra

Dos caules informes
E as plantas carnívoras
De bocas enormes
Lutam contra as víboras

E os rios soturnos
Ouve como vazam
A água corrompida

E as sombras se casam
Nos raios noturnos
Da lua perdida…


Vinicius de Moraes, in Vinicius de Moraes Livro de Sonetos, Ed. José Olimpo

domingo, 29 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Helena Costa Pinto
(aluna até 2008)


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

Herberto Hélder, (excerto do poema «Tríptico»,
publicado em A Colher na Boca, 1961)

sábado, 28 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Miguel (11º A)


ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Fernando Pessoa

sexta-feira, 27 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Sara Lopes (11º A)

SEI QUE ESTOU SÓ

Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.

Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.


Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 26 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Luísa Simão

A VIDA REAL

Se existisses serias tu,
talvez um pouco menos exacta
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas duas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-se como numa casa
ou uma memória.


Manuel António Pina

quarta-feira, 25 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Mafalda Azevedo
(aluna até 1995)


Nenhum dos meus caminhos guarda a tua sombra:
só as minhas mãos ficaram maiores com tua ausência
e andam perdidas,
não sabendo encontrar-se mais uma com a outra.

O ventre de cada coisa é um espelho a recordar-te
- um espelho onde o meu rosto não cabe -
e eu avanço, petrificado de silêncio,
como se me chamasses,
tendo-te cada momento mais distante
nas asas cansadas dos olhos sonolentos.

Se descendo minhas pálpebras prendesse a tua imagem,
jamais amanheceria para mim.
Se minhas mãos decepadas pudessem encontrar-te,
dar-te-ia minhas mãos como espada para o teu regresso.

Assim, gasto-me nos longos túneis desta ânsia,
certo de que jamais
estarei presente para ti
em cada estrela que descobrires na noite.


José Bento, in, Silabário

terça-feira, 24 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Dolores Alfaiate


O JARDIM

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.


António Ramos Rosa, in, Volante Verde

segunda-feira, 23 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Lurdes Geada


NO MEU JARDIM

No meu jardim aberto ao sol da vida,
Faltavas tu, humana flor da infância
Que não tive...

E o que revive
Agora
À volta da candura
Do teu rosto!

O recuado Agosto
Em que nasci
Parece o recomeço
Doutro destino:

Este, de ser menino
Ao pé de ti...


MIGUEL TORGA, in DIÁRIO VIII

domingo, 22 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Ana Fragoso Fernandes

À NICE

Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada da vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste duma flor!...


Florbela Espanca

sábado, 21 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Teresa Pinto Pereira

Sedia-m’ eu na ermida de San Simion,
e cercaron-mi as ondas que grandes son:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

Estando na ermida ant’ o altar,
cercaron-mi as ondas grandes do mar:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

E cercaron-mi as ondas que grandes son:
nem hei i barqueiro nem remador:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

E cercaron-mi as ondas do alto mar;
non hei i barqueiro nem sei remar:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

Non hei i barqueiro nem remador:
morrerei eu, fremosa, no mar maior:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

Non hei i barqueiro nem sei remar:
e morrerei eu, fremosa, no alto mar:
eu atendend’ o meu amigo,
eu atendend’ o meu amigo.

Meendinho

sexta-feira, 20 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... A PÁGINAS TANTAS
No dia de aniversário do poeta Gastão Cruz


GRAVURA


Ourives-gravador era o ofício
do meu avô paterno: sobre mesas
dispersos utensílios buris limas
por entre chapas e, há muito, objectos


acumulados; lembro-o curvado
com a luneta, fixamente olhando
a dura mão que no metal gravava
por encomenda nomes: desenhava com


força as linhas do seu significado
como se para alguma eternidade
ilusória as gravasse, assim o poeta


com o buril inscreve na deserta
chapa do mundo não interpretado
o sentido precário de o olhar


Gastão Cruz, in, A Moeda do Tempo

O poeta Gastão Cruz na nossa escola em dois colóquios
sobre Poesia Portuguesa do século XX 

quinta-feira, 19 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Madalena Fernandes

SONETO DE FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Vinicius de Moraes, in Poemas, Sonetos e Baladas

quarta-feira, 18 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Francisco Monteiro (10ºF)


O MENINO DE SUA MÃE


No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.


Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.


Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»


Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.


De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.


Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe



Fernando Pessoa

terça-feira, 17 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Ana Carolina Tim-Tim (11ºB)

SONETO DO MAIOR AMOR

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da vida eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor meu que quando toca, fere
E quando fere, vibra, mas prefere
Ferir a fenecer – e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.


Vinicius de Morais, in, Poemas, Sonetos e Baladas

segunda-feira, 16 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... A PÁGINAS TANTAS

No aniversário do nascimento do professor, ensaista, poeta e pintor
Mário Dionísio



Num pingo de verniz
o mundo inteiro cabe

O que se sabe e não sabe
o que se diz e não diz
luz um momento só

que enquanto o brilho escorre
e se cobre de pó
o encanto desfaz-se
dir-se-ia que morre

Mas o que ali floresce
não mais se apaga ou esquece

E o que se diz e não diz
o que se sabe e não sabe
na baça luz do verniz
enquanto morre renasce


Mário Dionísio, in, Memória dum Pintor Desconhecido

domingo, 15 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Filipa Mata (10ºF)



Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.

Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...


Sebastião da Gama, in Serra-Mãe

sábado, 14 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Sara Ribeiro


É difícil localizar e dizer o que tenho
mas, ao mesmo tempo, as coisas talvez sejam simples
porque
as minhas ambições são muito simples.
Não estou interessado em vencer na vida.
Queria era
encontrar alguma resposta para as coisas
que sinto,
para as coisas que desejo: uma espécie de ir ao encontro
do que pressinto sem saber o que é.
É claro que o amor
também talvez aqui caiba mas o que eu queria mesmo saber era a
maneira de me ligar à vida.
A minha vida não é aquela que me ensinaram
mas não consigo descobrir outra...

António Alçada Baptista

sexta-feira, 13 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Conceição Rodrigues


POESIA MATEMÁTICA

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar:
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez da sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
rectas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.

E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissectriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até àquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
frequentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fracção,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.



Millôr Fernandes, in, Tempo e Contratempo

quinta-feira, 12 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... A PÁGINAS TANTAS

No aniversário do nascimento de Pablo Neruda


Aqui eu te amo.
Nos escuros pinheiros se desenlaça o vento.
Fosforece a lua sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.
Descinge-se a névoa em dançantes figuras.
Uma gaivota de prata se desprende do ocaso.
As vezes uma vela. Altas, altas, estrelas.
Ou a cruz negra de um barco.
Só.
As vezes amanheço, e minha alma está úmida.
Soa, ressoa o mar distante.
Isto é um porto.
Aqui eu te amo.
Aqui eu te amo e em vão te oculta o horizonte.
Estou a amar-te ainda entre estas frias coisas.
As vezes vão meus beijos nesses barcos solenes,
que correm pelo mar rumo a onde não chegam.
Já me creio esquecido como estas velha âncoras.
São mais tristes os portos ao atracar da tarde.
Cansa-se minha vida inutilmente faminta..
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.
Meu tédio mede forças com os lentos crepúsculos.
Mas a noite enche e começa a cantar-me.
A lua faz girar sua arruela de sonho.
Olham-me com teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento,
querem cantar o teu nome, com suas folhas de cobre.

Pablo Neruda

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A ESCOLHA DE... ANDRÉ VIEIRA

(aluno até 2011)


O NAVIO DE ESPELHOS

O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
Mário Cesariny com o sobrinho, André Vieira
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Mário Cesariny de Vasconcelos

terça-feira, 10 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Helena Serra

Passa uma Borboleta por Diante de Mim


Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.


Alberto Caeiro, in, O Guardador de Rebanhos - Poema XL

segunda-feira, 9 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de ... Ana Margarida Guerreiro (12ºB)


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões

domingo, 8 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Antonieta Caxias

POEMA PARA GALILEO

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Oficios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Oficio.
Disse Galeria dos Oficios.)
Aquele retrato da Galeria dos Oficios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della
Signoria ...
Eu sei ... Eu sei ...
As margens doces do Amo às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa
ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas
os lábios,
percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou
a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era
tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste
pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de
braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer,
homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão



Em

http://www.youtube.com/watch?v=bbxT3N6z3hU&feature=endscreen&NR=1

a espantosa leitura do poema por Mário Viegas

sábado, 7 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de …Vera Saraiva Batista

QUASE

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro, Dispersão

sexta-feira, 6 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Assunção Sobral Gomes


NOSTALGIA


Nostalgia sem nome da paisagem,
Secreto murmurar de cada imagem,
Que na escuridão se ergue e caminha.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in, Dia do Mar

quinta-feira, 5 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Rodrigo Martins (10ºD)


O AMOR É O AMOR

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!



Alexandre O´Neill

quarta-feira, 4 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Rodrigo Lopes (10ºD)


FLORES PARA COIMBRA

Que mil flores desabrochem. Que mil flores
(outras nenhumas) onde amores fenecem
que mil flores floresçam onde só dores
florescem.


Que mil flores desabrochem. Que mil espadas
(outras nenhumas não)
onde mil flores com espadas são cortadas
que mil espadas floresçam em cada mão.


Que mil espadas floresçam
onde só penas são.
Antes que amores feneçam
que mil flores desabrochem. E outras nenhumas não.


Manuel Alegre

terça-feira, 3 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Bernardo Pereira (10ºD)


POEMA DO FUTURO

Conscientemente escrevo e, consciente,
medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exumado
da vala do poema.



António Gedeão, in Poemas Póstumos

segunda-feira, 2 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Beatriz Leitão (10ºD)


COMUNHÃO

Tal como o camponês, que canta a semear
A terra,
Ou como tu, pastor, que cantas a bordar
A serra
De brancura,
Assim eu canto, sem me ouvir cantar,
Livre e à minha altura.
Semear trigo e apascentar ovelhas
É oficiar à vida
Numa missa campal.
Mas como sobra desse ritual
Uma leve e gratuita melodia,
Junto o meu canto de homem natural
Ao grande coro dessa poesia.


Miguel Torga

domingo, 1 de julho de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Cláudia Dinis (10ºD)


Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.


Sophia de Mello Breyner Andresen