sexta-feira, 4 de março de 2011

Uma leitura e nada mais....

Já passou mais de um mês sobre o lançamento do livro Nada Mais e Ciúme, de Gil Duarte. Prometi ao editor e ao autor lê-lo, e escrever trezentas e trinta e oito palavras, tantas quantas as páginas do romance. Empolguei-me e são mais de quinhentas. Bom sinal este.
Perseguindo uma estratégia narrativa proustiana, cujo fulcro é a evocação alimentada pela memória de um narrador fortemente comprometido com situações testemunhadas e experienciadas, manifestando uma espécie de ethos e eros irónico-trágicos, sem faca e alguidar, acerca das relações pessoais e familiares, eis um dos eixos de narratividade de Nada Mais e o Ciúme.
O triângulo de relações estabelecido pelas personagens Bernardo, Dulce, Virgílio, fechado num círculo, que é a vida do narrador, é ensombrado pela tragicidade. Um triângulo dessa natureza, em Camilo, Eça, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, resolvia-se a tiros de bacamarte, com uma apoplexia, um corpo a boiar numa lagoa… anulando um dos lados do triângulo. Não enveredando por aí, o narrador sabe que o tempo tudo diluirá. Gil Duarte deixa que tudo apodreça por si como se o tempo fosse uma das personagens principais que silenciosamente atravessa o texto, a escrita. Uma espécie de tudo e nada mais donde sobressai o ciúme, outra centralidade do romance, sintetizado na frase final de Pedro (o narrador), proferida numa solidão cortante: “Tenho-lhe ciúmes. Saudades, não.”
Do ponto de vista do narrador, o que sobra do tempo de convivência, de partilha e cumplicidade é, apenas, o ciúme. Com efeito, este é resultado de relações próximas e de conflitualidade entre personagens que são e deixam de ser; são quase perfeitas, bafejadas pelo êxito, presenteadas pelo trágico e insólitos inesperados. Veja-se o caso do professor de matemática que ora se empolga ora desiste perante o desafio de saber, melhor, negar o movimento, como se, para descobrirmos se o movimento existe ou não, fosse necessário enfrentar um comboio, quando apenas um Toyota, num parque de estacionamento retira a vida a Leonor. Como se o ciúme fosse demonstrável e deduzido matematicamente, materializado numa fórmula brilhante, demonstração, afinal, do matemático que era: "tudo acaba menos o ciúme: o ciúme é a única coisa que resta quando já nada mais há” (p. 121). Este cepticismo lúcido e um racionalismo académico caracterizam Bernardo! Todavia, o ciúme é uma cristalização que resiste ao tempo. Esta formulação dá o título ao romance. É o resto de adições, subtracções, divisões... Gil Duarte apenas altera a ordem dos elementos da frase, estabelecendo um quase-silogismo. Certamente que o nada mais é "o tudo" que já não se tem, que já passou, que já não se suporta, as relações quebradas, mas sempre na perspectiva de se reatarem: Bernardo – Dulce – Virgílio - o próprio Pedro; Dulce e outras experiências dulcíssimas às quais Dulce não resiste porque ela, sim, é livre, não revela memória, vive o tempo, (a)parece sempre feliz. Infeliz, não. Por isso não cultiva o ciúme. A sua memória é linear, a dos outros é circular.
Enfim, o ciúme apresenta-se como mínimo denominador comum, quando já mais nada subsiste, sentimento ambivalente que promove e corrói.
A narrativa encanta pelo modo como o ethos (os costumes, os vários caracteres, entenda-se) e o eros convivem numa lógica de cio, mãe do ciúme, em qualquer sentido da sexualidade. Por vezes inveja, pelo menos da parte do narrador, também escritor como Virgílio. Mas quem não terá ciúmes de um Virgílio?
Em síntese: o ciúme perdurará enquanto houver memória e desejo.
Findando. Desde o início, com a apresentação da brutal e insólita cena da morte de Leonor, outra ausente sempre presente, elemento pro-diegético por excelência, ou uma parte do todo que é o nada mais, até ao epílogo, somos envolvidos pela narratividade a vários tempos, vozes e ritmos que evidenciam uma técnica já apurada e consolidada.

1 comentário:

  1. Excelente e generosa leitura de Nada Mais e o Ciúme. Obrigado, Jorge, pela atenção (nos dois sentidos da palavra)

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