No aniversário do nascimento de Miguel Torga (1907-1995)
ORFEU REBELDE
Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto a ver se o meu canto compromete A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga, in, Orfeu Rebelde
(Imagem parcial da exposição comemorativa do centenário do poeta)
no dia do aniversário do nascimento do poeta Carlos de Oliveira (1921- 1981)
Leitura
Quando por fim as árvores se tornam luminosas; e ardem por dentro pressentindo; folha a folha; as chamas ávidas de frio: nimbos e cúmulos coroam a tarde, o horizonte, com a sua auréola incandescente de gás sobre os rebanhos. Assim se movem as nuvens comovidas no anoitecer dos grandes textos clássicos.
Perdem mais densidade; ascendem na pálida aleluia de que fulgor ainda? e são agora cumes de colinas rarefeitas policopiando à pressa a demora das outras feita de peso e sombra.
A escolha de... A PÁGINAS TANTAS
No aniversário do poeta Mário Cesariny
YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
A escolha de... A PÁGINAS TANTAS
No aniversário do cantor, poeta e compositor Caetano Veloso
LÍNGUA
Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E - xeque-mate - explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé
Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(- Será que ele está no Pão de Açúcar?
- Tá craude brô
- Você e tu
- Lhe amo
- Qué queu te faço, nego?
- Bote ligeiro!
- Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
- Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
- I like to spend some time in Mozambique
- Arigatô, arigatô!)
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.
Caetano Veloso
Obrigatório ver, em
http://www.youtube.com/watch?v=hKFNbLUPIJ8
Dorme meu menino a estrela d’alva Já a procurei e não a vi Se ela não vier de madrugada Outra que eu souber será pra ti
Outra que eu souber na noite escura Sobre o teu sorriso de encantar Ouvirás cantando nas alturas Trovas e cantigas de embalar
Trovas e cantigas muito belas Afina a garganta meu cantor Quando a luz se apaga nas janelas Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Perde a estrela d'alva pequenina Se outra não vier para a render Dorme qu’inda a noite é uma menina Deixa-a vir também adormecer.
José Afonso, “Cantares do Andarilho”
Nota - Recordando Zeca Afonso suspendemos temporariamente a nossa celebração do Dia Mundial da Poesia. Não deixaremos, porém, de homenagear outros grandes poetas nascidos neste mês de Agosto.
Passar o tempo na infância expelindo bolas de sabão titubeantes, finais: querer a um pirilampo por sua quente solicitude na mão, e aos pombos, apenas por suas asas.
Dormência, levedura de réptil, amigo, mãe que se deita na mesma cama, e gato à soleira, canário preso à janela, leão na jaula estirado: sol, lareira, aleluia do inverno.