sábado, 31 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Maria João Cortegaça

O SILENCIO É DOS PÁSSAROS

Os que não têm pão
da vida inesgotável
cantam silencio em prata noturna
prata secreta da noite
vaga e fútil
das quimeras amorosas na noite

Na noite das pratas
Das pratas roubadas ao senhor mais rico
Na vida dos pássaros
na fuga da vida falhada aos gritos
um grito na altura
no espaço
entre a morte
e o último vagão da vida

Da vida dos pássaros
numa sombra que nunca se deixa apanhar
Na luz que nunca se deixa pintar
nem apagar mesmo no espelho
que te abraçou na tormenta
construída pelo lar fora
pelo lar fora dos pássaros
O fora do risco que escapou ao vento
e no picar nervoso do pássaro mais rico

Um dos pássaros mais ricos
e os dois mil voltes dum fio
que pareceu em instantes
o risco entre o vento
e o picar nervoso do pássaro mais rico

Nem o homem nem o diabo
nem a mulher
nem a labareda
Mas o fogo todo inteiro
a possibilidade inteira do fogo
a mão de fogo constante
inalteravelmente vermelho
irremediavelmente preso de amor aos dedos
sensualmente delicado em seus arabescos de morte

No céu mais mudo do silêncio
sumir em chamas
para os pássaros tudo o que antes
fôra a fuga entre a vida dos pássaros

No risco mais fino do silêncio
entre o palpitar do mundo
e a vida dos pássaros
arder muito simplesmente
em franca esperança
na dada medida do desejo-de-dentro
o dentro do fogo branco
o fogo-branco-desejo
arder na vida dos pássaros
arder em penas a cair do vento
no risco mais fino do silêncio
entre o palpitar do desejo
e o silêncio que pertence aos pássaros


Fernando Lemos in Teclado Universal

sexta-feira, 30 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de...Adélia Simas


De onde eu venho
sou visitada pelas águas ao meio-dia
quando o silêncio se transforma
para as doces palavras do sal em flor
e das raparigas
Os muros são de pedra seca
e deixam escapar a luz por entre corredores
de raízes e vidro
lentas mulheres preparam a farinha
e cada gesto funda
o mundo todos os dias
há velhas mulheres pousadas sobre a tarde
enquanto a palavra
salta o muro e volta com um sorriso tímido
de dentes e sol.

Ana Paula Tavares, in O Lago da Lua

quinta-feira, 29 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de...Maria Machado




O movimento


Porque a coisa podia encontrar-se parada

como uma caixa.

Haveria a superfície, o rosto mais belo ou velhaco,

o sorriso, a ironia, e os ofícios.

E lá dentro, escondido: osso, vísceras e sensações;

tudo quieto e pasmado, a admirar o cinema exterior.

Porque a coisa podia encontrar-se parada

como uma caixa;

mas não.

E (é) este facto (que) complica os vivos




Gonçalo M. Tavares, in Poética do Corpo

quarta-feira, 28 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de ... Margarida Santos

Ser Doido-Alegre, que Maior Ventura!

Ser doido alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo pr’além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Que nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola a falsa caridade,
Que bom, no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem...
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P'ra suportar melhor quem tem juízo.


António Aleixo, in Este livro que vos Deixo

terça-feira, 27 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Paula Fonseca


Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
- onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

José Gomes Ferreira, Poesia III

segunda-feira, 26 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... José Pedro Gonçalves


DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça


Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto

domingo, 25 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Rosa Costa

Faz-se luz

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
Intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objetos
os objetos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny, Pena Capital

sábado, 24 de março de 2012

O DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... José Pacheco

DA SOLIDÃO

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior
solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que
se fecha, que se recusa a participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado em si
mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a
quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade,
de socorro. O maior solitário é o que tem medo de
amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser
casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo.
Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo
entristece também tudo em torno. Ele é a angústia
do mundo que o reflecte. Ele é o que se recusa
às verdadeiras fontes da emoção, as que são o
património de todos, e, encerrado em seu duro
privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e
desolada torre.

Vinícius de Moraes, Para Viver um Grande Amor

sexta-feira, 23 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de... Luísa Fragoso

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.


Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos

quinta-feira, 22 de março de 2012

a escolha de... Elisa Costa Pinto

LAVOISIER

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 21 de março de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA


É bonito, haver um dia dedicado à celebração da poesia. Também a data foi uma escolha feliz, nesta época, metáfora para todos os começos.
Celebremos, pois, o dia.
Vamos fazê-lo, porém, dando ouvidos aos que “são contra os dias”, estes dias (da Criança, da Mulher, da Música, dos Direitos Humanos…), por os acharem sinal de desprezo pelo que comemoram, ou pelo menos de alguma fragilidade do que está a ser comemorado, nos restantes trezentos e tal dias do ano.
A solução impõe-se e só pode ser a de lembrarmos todos os dias este dia, ATÉ DE HOJE A UM ANO, com a publicação de um novo poema, escolhido por alunos, professores, funcionários, pais.

No final, teremos a Primeira Antologia Poética da ESPJAL.
A equipa da Biblioteca / projecto aLer+ tem o privilégio de começar, com

A escolha de … professora Ana Páscoa



Antes que Seja Tarde
Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca, in Poemas Dispersos

quinta-feira, 1 de março de 2012

NUNO MARKL FALA SOBRE OS CONTOS DE GIN TÓNICO

http://www.youtube.com/watch?v=JwB8_lZ2y94


É só "clicar" neste endereço para se ver/ouvir uma entrevista imperdível a Nuno Markl sobre o genial Mário-Henrique Leiria.