segunda-feira, 25 de março de 2013

UM POEMA DE FILIPA LEAL

Fotografia de Renato Roque
Poema lido por FILIPA LEAL, no dia 24.3.2013, no Centro Cultural de Belém.

E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.”
                                 Herberto Helder


OS MEUS PRIMEIROS PASSOS EM VOLTA


Amo devagar o poeta que tem um cão que tinha um marinheiro.
Pergunto-me se o poeta terá cinco dedos de cada lado, como eu.
Pergunto-me se o cão algum dia se fez ao mar, depois da morte do marinheiro.
Pergunto-me se envelhecer é sair de casa com os olhos contentes de pão e açúcar
e chegar atrasado, anos depois, ao fim. O luto, Herberto.
(Não o luto do cão – o meu.)
O luto em Lisboa ou no Porto, o luto em Israel ou na Palestina,
o luto é igual, deve ser igual, na tua rua e na minha.
Ouve, Herberto: era Dia Mundial da Poesia. Eu tinha ido ao cabeleireiro.
Vesti-me de preto e calcei aqueles sapatos de tacão alto. Eu ia de cabelo esticado.
Eu ia maquilhada e feliz. Ia de preto mas ia-me esquecendo da morte.
(Aos 33 anos, eu ia imortal.)
Quando o telefone tocou, como nos filmes, disseram-me que era urgente.
Estava a vinte minutos de subir ao palco com o meu poema, mas era urgente.
Estava a vinte minutos do fim da minha juventude, porque era urgente.
O luto, Herberto.
Tão urgente que só pode ser mentira, ou ficção, ou poesia.
Todos tão vivos naquele dia. E ninguém há-de morrer se levamos sapatos de tacão.
Não é possível tanta inabilidade para a corrida.
Não é possível tanta falta de Mãe.

Se eu quisesse, Herberto, enlouquecia.

Por isso hoje venho apenas perguntar-te se o teu cão se fez ao mar.
Diz-me que ele se fez ao mar.

FILIPA LEAL

(O poema tem passagens de poemas de Herberto Helder, dos livros Os Passos em Volta (“Cães, Marinheiros”; “Estilo”) e Ofício Cantante – Poesia Completa (“Aos amigos”, de «Lugar»; “Fonte”, de «A Colher na Boca»).

quinta-feira, 21 de março de 2013

segunda-feira, 11 de março de 2013

MANUEL DA FONSECA

Faz hoje 20 anos que morreu Manuel da Fonseca, nome grande da literatura portuguesa do século xx, que atingiu o ponto mais alto no conto, cultivado com a precisão, o rigor e a contenção da palavra, tão conformes ao seu Alentejo.
Recordamos um dos seus poemas, para ler e ouvir, pela voz única de Adriano Correia de Oliveira.

Tejo que levas as águas

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar.

Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores.

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas.

Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro.

Lava palácios vivendas
casebres bairros da lata
leva negócios e rendas
que a uns farta e a outros mata.

Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais.

Afoga empenhos favores
vãs glórias, ocas palmas
leva o poder dos senhores
que compram corpos e almas.

Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos corpos destroçados
lava-os com sal e iodo.

quarta-feira, 6 de março de 2013

DE TERESA RITA LOPES

UM POEMA DE TERESA RITA LOPES

O pombo escuro já meu conhecido há muito tempo
bica todas as migalhas das mesas do bar.
Todos o enxotam mas não os teme
e volta descarado
assim que dão costas.
De migalha em migalha 

Pombos em Varsóvia
se regala.
Perdoa não te amar
meu pedinte pombo
sujo!
Por seres preto?
Nem pensar!
Amo os melros,
os corvos e o Obama.
Será por apanhares migalhas
ao rés do chão
em vez de usares as asas que a Natureza
te deu?
Ou por usares essa bata encardida
dos apanhadores do lixo?
Meu pobre pombo !
Afinal talvez tão só de luto aliviado
pela tua perdida
liberdade
servo das migalhas fáceis em que te viciaste.

Teresa Rita Lopes (do Facebook)

domingo, 3 de março de 2013

CARLOS MOTA DE OLIVEIRA - POESIA



De um certo Luís Vaz de Camões chegando numa carroça vermelha
e de um tal Fernando Pessoa guiando um chevrolet preto


...........................................
"Toda a chave tem uma casa
como ponto de partida
e a seu lado vivendo
converso com ela
quando na minha mão rola.
Que faço? Esta porta tem
um cheiro a antiguidade.

Enfim, falta o Fernando Pessoa
que conduz um chevrolet preto
e com mais ou menos arte
sem a carta de condução.
Há que dar tempo ao tempo
mas deve chegar
pelas dez onze horas.

A quem já aceno é ao poeta
que mais sofreu e gozou
os desconcertos do mundo:
numa carroça vermelha
chega Luís Vaz de Camões
e pára em frente à casa
da vizinha Rosário."

Esta é uma passagem do poema "De um certo Luís Vaz de Camões chegando numa carroça vermelha e de um tal Fernando Pessoa guiando um chevrolet preto", num dos 5 livros que o poeta lançou no Teatro Estúdio Mário Viegas, no dia 1 de Março. Miguel Serras Pereira, outro poeta, dirigiu a sessão, que teve como cenário esculturas de Rinoceronte. Para ler, gostar e sorrir.