Há um livro que me é particularmente querido, e desde há muito.
O autor é um homem discreto, que preferiu esconder-se do público e fugir às entrevistas: J. D. Salinger. O título original é The Catcher in the Rye. A tradução portuguesa desta expressão tem variado: já lhe chamaram Uma Agulha no Palheiro. Já lhe chamaram À Espera no Centeio. (Ambas as edições se encontram no mercado). Mas trata-se de aproximações bizarras, insuficientes para «agarrar» um termo, "catcher", que não possuímos em português.
O narrador é Holden Caulfield, um jovem de dezasseis anos que acaba de ser "dispensado" (leia-se expulso) de um colégio interno.
Numa linguagem crua e cruel, com obscenidades ou palavras típicas de um rapaz da sua época - semelhantes, no fundo, às de qualquer adolescente de qualquer tempo e qualquer parte -, Caulfield revela-nos a sua paradoxal visão do mundo e da vida, impregnada de rancor e de inocência, malvadez e generosidade, incompreensão e lucidez. O seu humor fere. O desprezo que nutre pelos adultos (ou pelos próprios colegas) não é senão uma face oculta da carência que o marca, da necessidade de que o amem.
Vai narrando a aventura desse lapso em que, expulso de Pencey, decide não regressar imediatamente a casa: quer dar tempo aos pais para que recebam e digiram a notícia. E desaparece por uns dias, durante os quais, entre as mais estranhas peripécias, nunca perde a ligação íntima com a infância: recorda o seu irmão escritor, o outro irmão, que morreu, a sua irmã mais nova, que adora, evocados em memórias palpitantes, à Proust, em que todas as sensações permanecem intensas: os cheiros, as cores, as vozes.
É um livro mais triste do que revoltado, escrito nos anos cinquenta, mas em que reencontro, hoje, uma personagem que não é diferente do meu filho ou dos meus alunos. É um livro em que a dor está sempre à beira de se deixar tocar, apesar de disfarçada na arrogância, contida pela noção do ridículo ou aparentemente suspensa entre acontecimentos inesperados e divertidos.
Neste momento, é só o que interessa. Entendam-me: escrevo simplesmente sobre um livro que amo, pelo que é, em si mesmo. E se este texto despertou o interesse de alguém que não conhecia Uma Agulha no Palheiro, gostaria que o procurasse pelo que o livro é.
Por um instante, esqueçamos, pois, que J. D. Salinger, seu autor, morreu na quarta-feira passada. Talvez seja uma homenagem justa. Estamos a falar do seu livro: um livro que nunca morrerá.
o meu action man é mais letrado que o teu
Há 16 horas