sábado, 30 de janeiro de 2010

UM LIVRO

Há um livro que me é particularmente querido, e desde há muito.
O autor é um homem discreto, que preferiu esconder-se do público e fugir às entrevistas: J. D. Salinger. O título original é The Catcher in the Rye. A tradução portuguesa desta expressão tem variado: já lhe chamaram Uma Agulha no Palheiro. Já lhe chamaram À Espera no Centeio. (Ambas as edições se encontram no mercado). Mas trata-se de aproximações bizarras, insuficientes para «agarrar» um termo, "catcher", que não possuímos em português.

O narrador é Holden Caulfield, um jovem de dezasseis anos que acaba de ser "dispensado" (leia-se expulso) de um colégio interno.
Numa linguagem crua e cruel, com obscenidades ou palavras típicas de um rapaz da sua época - semelhantes, no fundo, às de qualquer adolescente de qualquer tempo e qualquer parte -, Caulfield revela-nos a sua paradoxal visão do mundo e da vida, impregnada de rancor e de inocência, malvadez e generosidade, incompreensão e lucidez. O seu humor fere. O desprezo que nutre pelos adultos (ou pelos próprios colegas) não é senão uma face oculta da carência que o marca, da necessidade de que o amem.

Vai narrando a aventura desse lapso em que, expulso de Pencey, decide não regressar imediatamente a casa: quer dar tempo aos pais para que recebam e digiram a notícia. E desaparece por uns dias, durante os quais, entre as mais estranhas peripécias, nunca perde a ligação íntima com a infância: recorda o seu irmão escritor, o outro irmão, que morreu, a sua irmã mais nova, que adora, evocados em memórias palpitantes, à Proust, em que todas as sensações permanecem intensas: os cheiros, as cores, as vozes.

É um livro mais triste do que revoltado, escrito nos anos cinquenta, mas em que reencontro, hoje, uma personagem que não é diferente do meu filho ou dos meus alunos. É um livro em que a dor está sempre à beira de se deixar tocar, apesar de disfarçada na arrogância, contida pela noção do ridículo ou aparentemente suspensa entre acontecimentos inesperados e divertidos.

Neste momento, é só o que interessa. Entendam-me: escrevo simplesmente sobre um livro que amo, pelo que é, em si mesmo. E se este texto despertou o interesse de alguém que não conhecia Uma Agulha no Palheiro, gostaria que o procurasse pelo que o livro é.

Por um instante, esqueçamos, pois, que J. D. Salinger, seu autor, morreu na quarta-feira passada. Talvez seja uma homenagem justa. Estamos a falar do seu livro: um livro que nunca morrerá.

1 comentário:

  1. A propósito, achei engraçado recuperar esta nota de leitura do "A Páginas Tantas" n.º17. Foi escrita pelo então meu aluno André Feio, na rubrica "O que ando a ler".

    "O último livro que li foi À Espera No Centeio do norte-americano J. D. Salinger. É uma espécie de autobiografia, assumindo o autor a identidade de um rapaz problemático, de 16 anos, que depois de ter sido expulso de vários colégios, regressa a Nova Iorque, no final do 1.º período. O temor de enfrentar os pais leva-o a ficar num hotel durante três dias e é então que acompanhamos as suas inúmeras experiências, numa narrativa de crítica feroz à sociedade. Impreparado para as vivências e o choque social com que se defronta, começa a enlouquecer, o que nos faz colocar uma questão interessante - afinal quem é louco? O autor ou o leitor, que não se apercebe das insuportáveis contradições sociais?
    Este livro tem uma linguagem bastante cativante e é, segundo o Saturday Review of Literature, “o clássico que revolucionou a literatura norte-americana”.

    André Feio, 11.º Ano

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