A escolha de… Francisco Rodrigues (12º E)
Cântico Negro
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "Vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redemoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
só para desflorar florestas virgens,
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
e vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátria, tendes tectos,
e tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
e sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
mas eu, que nunca principio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
e uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou,
sei que não vou por aí!
José Régio, in, Poemas
de Deus e do Diabo
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