sexta-feira, 27 de abril de 2012

DIA MUNDIAL DA POESIA

A escolha de… Isabel Rainha

Na Universidade de Coimbra, os anos sessenta, em plena
ditadura, ficaram marcados pela contestação ao regime. Era principalmente
através dos poetas que se chegava aos menos politizados alertando-os para as injustiças, ao mesmo tempo que se mostrava um caminho de esperança.

José Afonso e Adriano Correia de Oliveira traziam-nos
a palavra dos poetas com música, a que melhor atinge o coração dos homens, mas
havia livros que nos tocavam de modo muito especial porque refletiam o nosso
tempo. Era o caso da Praça da Canção e de O Canto e as Armas, ambos
de Manuel Alegre.

O poema que envio pertence ao último livro. Fala-nos
do poder da palavra e é dedicado a Luís de Camões.


LUÍS DE CAMÕES

Tinha uma flauta.
Não tinha mais nada mas tinha uma flauta
tinha um órgão no sangue uma fonte de música
tinha uma flauta.

Os outros armavam-se mas ele não:
tinha uma flauta.
Os outros jogavam perdiam ganhavam
tinham Madrid e tinham Lisboa
tinham escravos na Índia mas ele não:
tinha uma flauta.

Tinham navios tinham soldados
tinham palácios e tinham forcas
tinham igrejas e tribunais
mas ele não:
tinha uma flauta.

Só ele Príncipe.
Dormiam rainhas na cama do rei
princesas esperavam no belvedere
Ele tinha uma escrava que morreu no mar.

Morreram escravas as rainhas
morreram escravas as princesas
nenhuma teve o seu rei
para nenhuma chegou o Príncipe.
Por isso a única rainha
foi aquela escrava que morreu no mar:
só ela teve
o que tinha uma flauta.

Morreram os reis que tinham impérios
morreram os príncipes que tinham castelos
mas ele não:
tinha uma flauta.
De fora vieram reis
vieram armas de fora
os príncipes entregaram armas
ficou sem armas o povo.
As armas de fora venceram
todas as armas de dentro.
Só não venceram o que não tinha armas:
tinha uma flauta.

E as vozes de fora mandaram
calar as vozes de dentro.
Só não puderam calar aquela flauta.
Vieram juízes e cadeias.
Mas a flauta cantava.

Passaram por todas as fronteiras.
Só não puderam passar
pela fronteira
daquela flauta.

E quando tudo se perdeu
ficou a arma do que não tinha armas:
tinha uma flauta.

Ficou uma flauta que cantava.
E era uma Pátria.

Manuel Alegre, O Canto e as Armas

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